segunda-feira, 18 de julho de 2011

Continuação


Nossos olhares mantinham-se conectados, sem que nenhuma de nós pudesse piscar. Prendi meus braços na barra superior, deixando que meu corpo e rosto pendessem em direção aos olhos que me sugavam de dentro de mim.
Agora, tínhamos nossos rostos muito próximos, e podíamos sentir fielmente o calor fraco de nossas respirações. Podíamos sentir o aroma de nossas bocas contornando os traços uma da outra, meu gosto amargo misturando-se ao gosto doce de outro alguém.
Aos poucos as expressões faciais foram mudando, os olhos verdes, antes assustados, agora traziam uma leve sensualidade em seus brilhos opacos, e os lábios, antes entreabertos, agora pareciam guardar milhões de segredos.
A garota desviou bruscamente seus olhos, arrastando seu queixo orgulhoso em direção a um banco completamente vazio do lado esquerdo do ônibus. Levantou-se com cuidado, apoiando rapidamente os braços nas barras de ferros. Caminhei logo atrás dela, não por pressa de sentar ao seu lado, mas por medo que as barras de ferro e a força de seus braços não fossem suficientes para mantê-la em pé, intacta.
Cambaleou até o banco, levando outra vez seus olhos ao encontro dos meus. Sentei-me ao seu lado, fitando-a com entusiasmo. Não havia nada em seu rosto que pudesse lembrar Roxanne, nada que trouxesse a vaga lembrança de outro alguém, de outro lugar. Cada pequeno traço era único, cada tonalidade de pele era novidade. Desconhecia o ritmo de sua respiração, seus diversos sorrisos, seus tipos de risadas, seu gosto musical, seus filmes favoritos, o jeito como gosta do café, seu nome.
- Que tempo louco! – Levou as mãos de encontro com a pele rosada de seu braço, aquecendo-a com o atrito. – Há menos de uma hora estava fazendo um sol terrível. – Tinha a voz artificialmente rouca.
- Espero que esfrie.
- Ah, eu não. Frio dói, calor só cansa. – Mexia na alça de sua bolsa, enrolando-a em seus dedos. – Mas frio é bonito, muito bonito. – Olhou-me mais uma vez nos olhos. – Você está voltando para casa?
- Estou, e você?
- Eu... Bem, na verdade eu não sei. Eu nunca sei. Mas talvez eu esteja, talvez eu possa dizer que estou indo para casa. – Ficou em silêncio, voltando os dedos para a alça da bolsa, enrolando-a com mais força. – É, estou indo para casa. – Sussurrou.
- E onde é sua casa? – Perguntei esperando que ela não achasse esquisito.
- Eu não sei, por isso não sei se estou voltando para casa. Sequer sei se eu sou eu, e se serei esse eu amanhã ou depois. Mas se você quer saber onde vou descer, é daqui a duas paradas.
Desesperei-me ao perceber que teria apenas duas paradas para absorver tudo o que pudesse dela.
- E você vai para onde depois de descer?
- Para casa, mas não para minha casa.
- Vai para a casa de quem? – Já não me importava com a esquisitice de minhas perguntas ou com o fato de que não nos conhecíamos até então. Eu precisava conhecê-la, e restava apenas uma parada.
 - Vou para casa de uma amiga. E você? Como tem tanta certeza de que está indo realmente para casa? De que seu destino é realmente sua casa e não a casa de outro alguém?
- Eu... Eu também não sei. Na verdade nunca pensei nisso antes.
- Ninguém pensa nisso, para sorte de todos. Quer dizer, não é qualquer lugar que podemos chamar de nossa casa, não é porque dormimos e comemos em algum lugar que esse lugar é automaticamente nosso lar. Talvez poucas pessoas tenham um lar, talvez... Talvez eu tenha tido um e o perdi.
- Perdeu como? – Perguntei rápido, sentindo os freios do ônibus, vendo seu corpo levantar, a alça de sua bolsa deslizar sobre seus ombros, sua saia ser arrumada e suas pernas finas comprimir-se contra meus joelhos. Segurou-se outra vez nas barras de ferro, olhando-me uma última vez.
- Sonhei demais. – Respondeu depressa.
E desapareceu pelas ruas imundas, deixando fios de cabelo presos aos pregos do banco, suor no estofado, e um enorme vazio em meu peito. Talvez ela fosse minha casa, talvez eu fosse a casa dela. Nunca saberei.

Um comentário:

  1. As pessoas como casas para alguém, nunca tinha pensado desta forma. Minha mente deu voltas e voltas depois de ler o teu texto, tão bem escrito.

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