segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A boneca.

Dentro de uma caixa, escondida no meio de tantas outras caixas espalhadas pelo sótão, havia uma boneca de pano, seu tecido era quase transparente parecia mais um véu que envolvia a boneca por inteira, podia se ver o forro amarelado e as linhas dos remendos, não tinha mais cor alguma apenas o tom sem graça que todas as coisas ganham quando ficam velhas.
A boneca, por mais que o tecido não mostrasse, tinha um coração. Sua mãe, como gostava de chamar sua criadora, Erna, cuidou muito bem em lhe dar um, fez uma almofadinha vermelha colocando dentro dela todos seus sonhos, todo seu amor e esperanças, e é claro, espuma. O coração foi sua primeira parte a ser criada, depois vieram a cabeça, os braços, pernas, tudo feito delicadamente pelas jovens mãos de Erna. Cuidou desse feito durante meses, sempre criando algo a mais para a boneca, cachos loiros feitos de lã, olhos azuis de botões, vestidos de várias cores, laços de fita e tudo de mais bonito.
Finalmente ficou pronta e logo teve sua primeira dona, uma garotinha um tanto quanto chatinha, a levava para todos os cantos, apertava, mordia, esquecia nos lugares mais improváveis, mas mesmo assim a boneca adora sua companhia. Depois de um tempo chegou uma nova menina, e então as duas brigavam pela boneca, mas no fim sempre se divertiam. Vieram outras donas, no total foram sete, as mais antigas iam largando a boneca e todos outros brinquedos, e novas crianças iam chegando a casa, os meninos viviam escondendo-a em lugares estranhos, e as meninas choravam desesperadamente até as mãos de Erna, que aos poucos iam envelhecendo, conseguirem encontrá-la. Sempre estava ali cuidado da boneca, lavando, remendando, trocando os tecidos, a espuma.
Com o tempo não havia mais crianças, apenas uma ou duas novas, netos de Erna, essas não largavam a boneca, fazendo-a comer terra, afogando-a no lago, esquecendo-a na neve, mas a boneca sempre estava ali, completa. Todas as férias, feriados ou fins de semana vinham mais crianças, a casa vivia cheia de pessoas, festas, jantares, almoços em família, e as crianças traziam consigo um brinquedo novo, mais bonito e divertido que a pobre boneca de pano, algumas bonecas falavam, choravam, faziam xixi, ou até mesmo caminhavam, a boneca de pano antes tão amada agora encontrava-se esquecida em um canto qualquer. Erna então arrumou a boneca, deixando-a em sua cama.
Após alguns anos as visitas dos filhos diminuíram, seu marido faleceu, e Erna ficou apenas em companhia da boneca de pano, embora esta não falasse, ela tinha um coração bom e concordava em fazer tudo com sua mãe. As duas passavam as tardes conversando, lembrando do movimento que antes existia ali, cozinhavam, perdiam-se em conversas sobre o passado, sobre épocas que nenhuma das duas pode vivenciar, conversavam até faltar saliva. Faziam crochê, costuravam roupas novas para a boneca, arrumavam a casa, e se divertiam.
Até que a pobre boneca percebeu que Erna já não era a mesma, ela estava tão cansada, tão doente, sua pele perdia a cor, e as rugas revestiam seu corpo por completo, os cabelos que a pouco tempo atrás eram ruivos, um ruivo mais do que perfeito, agora não passavam de um tom sem graça de cinza, quase branco. Foi então que a boneca se deu conta de que Erna um dia morreria, e que chegaria o dia em que ela seria apenas uma boneca jogada na caixa, sem nome.

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