- Fique. – Depois de dias de silêncio, tal pensamento
bruscamente escapou por minha boca, tomando controle do corpo e da alma enquanto
minha mente deslizava para o abismo existente em mim.
- Fique. Por favor, fique! – Agora meus braços a envolviam,
lutando com sua força e pressa, com seu desespero em se ver livre, em tirar a
mala de cima do guarda-roupa, bater as mãos para afastar a poeira, e
cuidadosamente guardar suas roupas, livros, discos, pincéis, tintas e palavras-cruzadas
solucionadas há anos.
- Eu passo um café. Podemos ver um
filme. Eu deixo você me pintar, se você ainda quiser. Você queria tanto... E eu
nunca deixei. Agora eu deixo. Pode me pintar do jeito que me vê... Do jeito que
sou. Não vou pedir pra me distorcer. Pode me pintar aqui, descabelada, com os
olhos inchados, o rosto molhado e o pijama sujo. Só me retrata. Só me deixa
saber de mim, saber de nós.
Seus olhos agora me olhavam
tristes, como se enviando uma mensagem de uma alma pra outra, como se dissessem
que não enxergavam, que não havia nada em mim que desejasse lembrar algum dia.
Desejara algum dia, eles diziam... Desejara tanta coisa algum dia. Mas agora só
poderiam fugir.
- O que você espera que eu faça?
Que eu acenda um cigarro, sente na sacada e espere enquanto você tenta
descobrir o que é meu e o que é seu? Isso não existe mais... O que você espera
que eu faça? Que eu seque o rosto e diga que tudo bem, que você faça seu tempo.
Não existe tal coisa.
Andava de um lado para o outro,
levando suas mãos magras e tortas até o rosto, tampando os olhos e sussurrando
começo de palavras, inícios de frases. Voltava-se em minha direção, tentava
continuar o que começara a dizer, virando-se outra vez ao se deparar com o
silêncio de seus lábios.
- Fale. Diga-me qualquer coisa. Diga-me...
Quando foi que deixamos de ser nós? Quando foi que eu deixei de ser sua garota?
Quando foi? Me conta... O que eu fiz? O que eu não fiz? É meu temperamento? São
minhas roupas? É minha voz? Me diz. Qual o problema comigo? Qual o problema com
nós? Fale. Deixe-me resolver as coisas pra gente.
Aproximou-se com pressa,
aninhando-me em seus fracos braços, beijando-me a testa, as maças úmidas do
rosto, os olhos, os cabelos, os lábios. Olhava-me com ternura e medo.
Afastou-se um pouco, tomando meu rosto por entre suas mãos. Olhou-me uma última
vez antes de soltar-me, antes de abrir a porta pra não voltar mais, e deixou que
nesses segundos a alma me contasse o que o corpo não entendia direito. Não era
a mim que havia perdido. Não era a nós que havia perdido. Era a si mesma.
E sem bagagens, sem dinheiro,
destino ou documentos, bateu a porta da sala. Talvez estivesse em algum café.
Talvez estivesse na beira da estrada. Talvez estivesse entre as páginas de
algum livro esquecido nas prateleiras da biblioteca pública. Talvez estivesse
em alguma canção que já não era tocada. Tudo que eu sabia era da existência
constante de nós, e da certeza que a maçaneta giraria algum dia, que qualquer
dia entraria na sala com um sorriso antigo, jogaria seu corpo no sofá e
reclamaria do tempo.
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