terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Os lábios sangravam ao encontrarem seus caninos afiados, os pés, tornozelos e roupas traziam a cor seca do fluxo rubro que correra de suas grossas veias, os olhos inchados transbordavam junto ao vazio em seu peito. Não havia mais nada, nada que a prendesse a eterna luta de viver, nada que a obrigasse a levantar do piso frio e fitar seu reflexo distorcido no pedaço maior do espelho partido ao chão do quarto. Não havia mais espera, o algo se fora antes mesmo de existir concretamente.
Encolhida fitava a luz fraca vinda da janela entreaberta, se retorcendo aos apagões causados por sombras de diversos tamanhos que vagavam com seus guarda-chuvas. Escutava os risos, as vozes que repetiam as paixões e alegrias da noite passada, lamentando pelo tempo perdido, pela inércia de seu corpo, pelas luzes não acesas, pelas portas trancadas.
Sentia tanto a falta dela, da esperança que murchara em seu peito, da garota que um dia fora sua. Sentia tanto a falta de si mesma, de seu pequeno corpo estendido pela grama ao entardecer, sem nada atormentar sua mente pequena, sem a falta do algo. Sentia tanto a falta de estar completa, de não se importar com essas curvas nojentas que formavam seu corpo, sem sentir desprezo pela carne que a formava, pelos ossos que não apareciam.
Estremeceu ao escutar os conhecidos passos aproximarem-se da porta trancada, as mãos macias e pálidas batendo contra a madeira pintada, os lábios entreabrirem-se sussurrando seu nome. Respondeu, fingindo calma, que estava tudo bem, que apenas estava cansada, que estava sem fome, que dormiria até que tudo se resolvesse. Ouviu os passos afastarem-se, encolheu-se ainda mais, desabando dentro de si.

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