terça-feira, 2 de agosto de 2011


Fui guiada pela enfermeira até uma pequena sala de estar. Havia um sofá de dois lugares com almofadas estampadas demais, uma poltrona azul escura, uma mesa de centro onde estavam dispostas as xícaras de chá e travessas de biscoito, uma janela com vista para o jardim, cortinas verde fraco, pinturas de flores nas paredes, tapetes pequenos amontoando-se por sobre as falhas do assoalho muito lustroso, uma lareira com o que pareciam ser brasas, e plantas falsas em vasos de porcelana.
- Sente-se, por favor! – Estendeu os braços para o quase meio - círculo formado pelo sofá e pela poltrona ao redor de um tapete um pouco maior. – Fique a vontade para se servir de chá. Irei buscá-la no quarto, volto em alguns minutos. – Forçou um sorriso e deixou o cômodo.
Deixei que meu corpo deslizasse sobre as almofadas, tentando forçá-lo a relaxar. Minhas mãos estavam suando, meus olhos ardiam, minha boca parecia cheia de areia, meus lábios tremiam, e meu coração parecia prestes a saltar boca a fora.
Fechei os olhos e tentei encontrar alguma memória calma, alguma tarde de primavera que pudesse me distrair por alguns segundos. Mas não pude pensar em mais nada que não fossem as rodas de sua cadeira  girando pelos corredores pálidos, seus cabelos grisalhos grudando em sua testa úmida, seus dedos enrugados e sua pele áspera. Sentia saudade do que ela tinha sido, do que tínhamos sido, do que eu tinha sido.
Seu aroma de rosas recém colhidas e chá de camomila rapidamente invadiu minhas narinas, fazendo com que todo meu corpo enrijecesse. Tentei apoiar-me nos encostos laterais do sofá e forçar minhas pernas a manterem-se firmes no chão, mas meu corpo parecia imóvel.
Lentamente as rodas de sua cadeira fizeram a curva para passar pela porta, sendo travadas ao chegar ao tapete maior. Minha respiração perdeu o ritmo por um breve período de tempo, minha visão tornou-se turva e minhas mãos colocaram-se a tremer. A enfermeira levantou os olhos para mim, sorrindo timidamente e deixando o cômodo outra vez.
Forcei-me a levantar e aproximar-me dela. Seus olhos pareciam cansados por trás das lentes grossas de seus óculos, seus lábios pareciam mais secos, e em seu rosto havia rugas novas. Sua expressão parecia perdida, como o rosto de quem não sabe o que sente, quem não sabe ao certo se sente.
Ajoelhei-me ao seu lado, deixando que minhas mãos trêmulas e velhas aninhassem suas delicadas mãos. Estavam tão frias quanto as minhas. Voltou seus olhos cinza para meu rosto, prendendo o olhar em meus olhos negros. Parecia não estar entendendo o que acontecia, parecia não...
- Quem é você? – Perguntou desconfiada.
Contorci-me disfarçadamente, tentando esconder as lágrimas que pareciam prestes a lambuzar minhas maças do rosto. Apertei-lhe suavemente as mãos, olhando-a nos olhos.
- Sou eu, a Kate. –Tentei sorrir.
- Você não pode ser a Kate. A Kate tem pouco mais da metade da sua idade, querida. – Olhou-me desconfiada, soltando minhas mãos. – Não pense que só porque estou velha posso ser enganada facilmente. - Parecia zangada.
-Não estou tentando enganá-la, eu sou a Kate. Eu apenas envelheci, como você, como todo mundo.
Minhas visitas costumavam ser semanais, mas com o passar do tempo os médicos acharam melhor diminuírem as visitas, até que se tornaram semestrais. Fazia exatos seis meses que eu não a via, que não sentia seu cheiro, não tocava seu rosto. Fazia dez anos que ela não me reconhecia, que podia lembrar-se de Kate, mas não que eu era Kate. Lembrava que Kate e ela tinham sido amantes, que se encontravam em um celeiro todas as tardes, e nos tempos de seca, quando seu marido viajava, passavam dias trancadas no quarto, amando-se suavemente.
- Você não pode ser Kate porque... Porque a Kate... A Kate não vai mais voltar... Ela... – Seus olhos encheram-se de lágrimas de repente. – Ela... Se... Se foi há... Vinte anos. Ela se foi há vinte anos. – Repetiu a frase, enxugando o rosto.
Estiquei os braços para o sofá, puxando uma das enormes almofadas. Sentei-me e prendi meus olhos outra vez aos olhos de Konstantine. Dessa vez, pela primeira vez, senti-me cansada de tentar convencê-la de que sou Kate, de que ela me amou, de que eu a amei, de que eu ainda a amo. Dessa vez, pela primeira vez, cheguei à conclusão de que talvez Konstantine não me reconheça porque eu não sou mais Kate, ao menos não aquela Kate.
- Talvez eu só não seja a Kate que você conheceu, posso ser outra Kate, não posso? – Sussurrei.
Seus lábios entreabriram-se revelando dentes amarelos de café e cigarros. Estendeu as mãos para tocar meus cabelos, fechando os olhos delicadamente.
- Sim, você pode ser outra Kate. – Respondeu ainda sorrindo.

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