terça-feira, 25 de janeiro de 2011


O chá da tarde na residência dos Gray's já havia sido servido, e os poucos convidados, sentados sobre as cadeiras estofadas do jardim, soavam entediados. Mr. Price acendera um charuto, ali mesmo, junto às damas. Miss Wood parecia presa à dor causada por suas botas apertadas. Mrs. Dixon e sua filha, Miss Dixon, discutiam como voltariam para casa caso chovesse.
-Oh, poderão ficar aqui. Sem dúvida poderão. - Disse Mrs. Gray, quebrando seu silêncio que vinha desde que a primeira louça fora posta à mesa. Donna, diferente de todas as damas sentadas ao seu redor, não dava a mínima para os pequenos detalhes. Não fazia caso quando os homens acendiam seus fedorentos charutos ou enchiam seus copos de gim. Não dava muita importância para as flores expostas ao centro da mesa, tampouco fazia questão de apresentar talheres polidos, porcelana nova e uma hospitalidade jamais vista. Apenas sorria, mantendo as xícaras cheias e seus lábios cerrados.
Mr. Gray, depositando o charuto sobre o cinzeiro de vidro, esticou suas pernas, acariciando levemente os calcanhares de Miss Dixon. Os olhos da pequena dama, azuis como Robert nunca houvera antes visto, levantaram ao encontro dos dele, e suas maças do rosto, pálidas pelo pó de arroz, coraram levemente.
- Adoraria conhecer os retratos da família - Comentou Miss Wood ao perceber o que ocorria por baixo da mesa.
- Robert, querido! - Donna exclamou com sua voz cortante - Leve as damas até a sala dos quadros.
Disse isso, não por gentileza, nem por sentir orgulho de seus antepassados, mas sim porque daria qualquer coisa para que as damas deixassem a mesa imediatamente.
Mr. Gray levantou-se ao lado das moças ainda sentadas, revelando seu tronco largo, suas pernas compridas, seu terno um pouco desbotado. Miss Dixon e Miss Wood o seguiram em silêncio pelo quintal acinzentado, pelos corredores avermelhados e cheios de portas, pelas escadas gastas, pelas flores murchas de todos os vasos.
Robert parou em frente a uma porta menor, tirando do bolso esquerdo um molho de chaves. Apertou entre os dedos rosados a chave mais delicada, encaixando-a na fechadura.
Abriu a porta por completo, deixando-a bater levemente contra a parede.
A sala era escura, exceto pelas luzes amareladas que dançavam sobre os retratos e vestes de seus antepassados.
-Este - disse, caminhando em direção ao mais antigo quadro - É meu tataravô, tudo que sei sobre ele cabe no espaço de três segundos.
- Hm? - Disse Miss Wood, parada ao seu lado demonstrando total interesse.
- Seu nome. É tudo o que sei.
- Qual é seu nome? - Perguntou Miss Dixon, parada, perplexa, com lágrimas grossas escorrendo por sua face aveludada. - Por Deus, quem é ela? - Esticou as mãos, tocando as faces da dama retratada.
- Hm, esta é Rose. Sua história, diferente de todas outras, não cabe em espaço de tempo algum. Sua história é infinita. - Disse com falsa profundidade.
- Conte-me! Por favor, conte. - Melissa, como era chamada Miss Dixon, gritou enquanto enxugava suas lágrimas.
Mr. Gray sentou-se sobre o divã cor de vinho, cruzando as pernas e forçando as memórias a aparecerem.
- Rose nunca teve a idade com que foi retrata. Na verdade, Rose nunca nasceu. Sua mãe sofreu um aborto com poucos meses de gestação, mas no ápice de sua loucura (pois diziam que era completamente louca) não acreditou nos médicos, levando seu corpo, acredito, a se desenvolver como se dentro dela ainda houvesse um pequeno feto. Mas não havia.
Parou de falar, levantando e observando o quadro.
- Mariah, sua mãe, a retratou em todas as fases da vida, ateando fogo nos quadros anteriores. Este foi o único encontrado.
- O que aconteceu com ela?  - Miss Wood suspirou.
- Morreu carbonizada.
As duas damas trocaram olhares, buscando nos olhos da outra algum traço de que pensara a mesma coisa. Mr. Gray continuou.
- Dizem, os religiosos, que a alma da menina sempre existiu. Que a cada quadro sua alma era aprisionada, podendo então ter se vingado pelas vezes que foi queimada.
Fitou as damas mais uma vez, estavam pensativas.
- Alguns poetas acreditam que ela não possa sentir nada, que esteja condenada a mesma expressão facial por toda eternidade. Prometeram milhões de vezes, invadir nosso sótão, e mais uma vez, pela última vez, incendiar o retrato, libertando a alma ainda jovem de Rose.
- Não parece tão diferente de nossa posição atual. - comentou Miss Dixon.
- Como? - Perguntaram ambos.
- Quero dizer que nós, assim como Rose, estamos presos a expressões faciais, e somos forçados a esconder falhas ou sentimentos inapropriados. Estamos nos aprisionando em retratos o tempo todo, e hora ou outra, ateamo-nos fogo por puro deleite.
E o silêncio se estabeleceu.

2 comentários:

  1. CACETE ! QUE FODIDO ISSO, LI SEM PISCAR. PORRA , MAY , PORRA !

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  2. Se eu acreditasse em reencarnação, diria que você é a Clarise Lispector.

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