sexta-feira, 9 de julho de 2010

Acabei de fazer um novo investimento. Comprei, mais por necessidade do que por consumismo, uma pequena casa. Suas paredes, escuras para quem está fora, claras para quem está dentro, são de um vidro forte e impenetrável. Mobiliei cada cômodo com todos meus amores, em algumas partes espalhei memórias pelas paredes, fixando os quadros de saudades e os de indiferença, Espalhei as falhas sobre o colchão, as desilusões coloquei no banheiro, acima da pia.
Perdi apenas um dia a mobiliando, tratando de deixá-la ao meu modo. Espalhei prateleiras pela sala, televisões ligadas no mudo, rádios mal sintonizados, discos riscados, fitas antigas demais para serem ouvidas. Comprei todas que pude encontrar em um brechó, levei também as coisas de um antiquário, não pela beleza do antigo, mas pela forma como nós, eu e os móveis, somos descartáveis.
Por fim, lá estava meu corpo estendido sobre o divã da sala. Virei meu rosto, deixando as imagens da rua invadir meu campo de visão. Um garotinho ruivo e gordinho, puxando a mãe pelas mãos, apressando o passo em uma pressa sem destino. Pressa de viver, de passar rápido, de controlar o tédio, de vencer o tempo.
Uma garota, da minha idade, andava em seus fones de ouvido. Acreditava ter o coração partido, mas iria entregar-se novamente. Esperava por um príncipe, e seus sonhos infantis se misturavam com todas coisas que jamais pensou sobre, que jamais escolheu, apenas aceitou e continuou. Continuaria com as verdades do mundo, ignorando as suas próprias.
Levantei-me, apoiando minhas costas em algumas almofadas. E então encontrei a imagem que havia ignorado desde então. Meu corpo refletia no vidro, isso não fazia parte dos planos. Meu rosto estava sujo, minhas mãos estavam grudentas de cola e suor, meus joelhos avermelhados e arranhados, e minhas cochas estavam irritadas. Ignorei meu reflexo, assim como ignorei o rosto aproximando-se do vidro, lutando contra a barreira. Bateu, procurou uma porta, tateou procurado em busca de passagens secretas. Correu pela casa toda, invadido os fundos, procurando alguma forma de entrar, de matar a curiosidade.
Não pude ignorar por completo, seus longos cabelos ruivos, assim como seus lábios aparentemente macios e seus olhos grandes e verdes, convidaram-me a apreciar a devoção com que tentava invadir a película que me afastava do mundo, me mantinha segura em meu tédio imoral. Aproximei da parede, tocando minhas mãos onde estavam suas mãos, meus lábios onde estavam seus lábios, e ajeitando mentalmente seu cabelo desgrenhado.
Poderia abrir a fechadura, pedir que entrasse, oferecer um chá. Havia biscoitos, feitos pela manhã, não eram os melhores, eram feitos por mim, mas serviriam para agradar alguém. Talvez eu pudesse esperar que ela virasse, fosse embora, e então sair, andar por onde ela andou, sentir o ar que respirou, e então deixar um recado. Mas tudo que fiz foi fechar as cortinas, tirar a televisão do mundo, e esperar que ela desistisse. E foi o que ela fez.

4 comentários:

  1. E assim ela se esforça mais pela solidão? Essa casa revestida por sentimentos e acontecimentos passados poderia ter uma vida a mais.

    lindo, ainda que triste.. não sei qual sentimento fala mais alto

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  2. A beleza e a tristeza são tão amigas quanto café e nicotina.
    E vc sempre me surpreendendo.

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  3. Aqui tem uma admiradora de todos os seus textos magníficos e inteligentes. Nunca se esqueça. De fato, sempre que precisar, aqui tem uma amiga. Gostei do modo em que fez esse texto, muito bem escrito. Parabéns! *-*

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  4. parece que sou a menina dos fones :|
    parabéns voce escreve surpreendentemente!
    veja meu blog depois!

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